Aviso aos nossos inimigos:

"Pereçam miseravelmente aqueles que pensam que estes homens fizeram ou sofreram algo vergonhoso." (Filipe II da Macedônia sobre o Batalhão Sagrado de Tebas, o Exército de Amantes)

23 outubro 2020

A esquecida história HAH do Cristianismo Medieval

Homossexualidade na Idade Média, Homossexualidade e Cristianismo
Iluminura bíblica mostrando um casal de homens e um casal de mulheres instigados por demônios.
Século XIII (c. 1225), Codex Vindbonesis.

 Hoje, seria fácil supor que o desejo do mesmo sexo, especialmente entre homens, está em conflito com a história do Cristianismo. Afinal, muitos elementos do cristianismo evangélico conservador moderno, desde as campanhas infames da Igreja Batista de Westboro (EUA) aos esforços baseados na fé por políticas anti-"LGBTQ", dão a impressão de que a religião é fundamentalmente oposta à ao amor entre iguais.

A divisão, entretanto, não é tão rígida quanto se possa imaginar. As evidências históricas falam de uma rica tradição de continuidade na literatura, filosofia e cultura que vai desde a antiguidade até o cristianismo medieval, onde as intimidades entre pessoas do mesmo sexo puderam florescer.

Na verdade, podemos encontrar em todo o mundo medieval os vislumbres potentes do amor do mesmo sexo e o papel que ele desempenhou na formulação de uma linguagem para súditos cristãos como povos marginalizados e perseguidos. Muitas histórias de como figuras AMS (Amantes do Mesmo Sexo) manobravam em vários espaços seculares e religiosos do mundo medieval compartilham uma franqueza de cair o queixo sobre intimidades e sexualidade do mesmo sexo e podem fornecer evidências importantes sobre como os escritores medievais pensavam sobre as interseções de gênero e desejo sexual.

Relevo em lápide do século XIV em um mosteiro construído em 1009 nos Pirineus (entre as atuais Espanha e França)
Embora as relações entre pessoas do mesmo sexo não fossem aceitas no Cristianismo medieval como são por muitos hoje, elas também não provocavam o intenso desdém que encontramos na direita cristã moderna. Apesar das evidências de grande diversidade nas práticas sexuais, as intimidades entre pessoas do mesmo sexo dificilmente são o foco de preocupação para a maioria dos primeiros escritores cristãos e medievais. Na verdade, as proibições contra as relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo aconteceram seletivamente, muitas vezes motivadas mais por fatores políticos do que religiosos. Por exemplo, no século VI, o historiador do imperador Justiniano, Procópio (Prokopios), nos diz que Justiniano aprovou uma legislação contra as relações entre pessoas do mesmo sexo apenas para que pudesse perseguir certos inimigos políticos cujas histórias sexuais eram conhecidas por ele.

Santa Eugênia
Além disso, em todo o Mediterrâneo medieval, encontramos uma série de vidas de santos que contam as histórias de indivíduos que foram designados do sexo feminino ao nascer, mas se tornaram monges em comunidades monásticas exclusivamente masculinas. Na história de Santa Eugênia, que viveu brevemente sua vida como o monge Eugenios, a santa é assediada sexualmente por uma mulher chamada Melânia. O texto é bastante claro que Melânia é atraída pela aparência masculina do monge. Essa história é importante, porque nos mostra a necessidade de tratar esses monges como homens e não confundi-los como mulheres. Ricas e complexas por si mesmas, essas figuras permitiram aos autores medievais abordar questões difíceis sobre comunidade, gênero, sexualidade e piedade.

Como os autores nem sempre souberam apreender e interpretar o gênero de seu protagonista, as histórias nos expõem as formas como o desejo sexual entre homens se manifestava nas comunidades religiosas. Na história de Santo Esmaragdo (Smaragdos, "Esmeraldo" em grego), do século V, o jovem monge imberbe chega ao mosteiro, onde é isolado pelo abade e colocado em uma cela separada. O autor nos conta que ele foi colocado ali para que não pudesse ser visto por seus irmãos, para não fazê-los tropeçar por causa de sua beleza esmeraldina.

Homossexualidade na Idade Média, Homossexualidade e Cristianismo
Santo Esmaragdo
Podemos supor que o narrador é capaz de escrever com franqueza sobre o desejo do mesmo sexo exatamente porque a presunção é que esse monge, designado como mulher ao nascer, é uma mulher (em alguma função) em sua mente. Mas uma familiaridade com esses textos e uma sensibilidade para as línguas em que foram originalmente escritos mostram uma realidade muito mais complexa para essa separação e proibição.

O abade nunca fica confuso sobre como ou por que um jovem monge pode excitar sexualmente seus companheiros monges, nem há qualquer preocupação ou dúvida quanto ao seu gênero. Uma percepção semelhante do desejo do mesmo sexo nos mosteiros é evidente em uma ampla variedade de autores cristãos e medievais. Por exemplo, em A Vida de Cirilo de Cítópolis do fundador monástico palestino do século V, Eutímio, o monge pede a seus seguidores que “tomem cuidado para não deixar seu irmão mais novo se aproximar de minha cela, pois por causa da guerra do inimigo não é certo para um rosto feminino ser encontrado no [mosteiro]”. E essa proibição contra “rostos femininos” ou “homens sem barba” é encontrada nas regras escritas para regular a vida monástica. Da mesma forma, em sua Escada Celestial de meados do século VII, João Clímaco elogia os monges que são particularmente adeptos de incitar a animosidade entre dois outros que “desenvolveram um estado de luxúria um pelo outro”.

No entanto, apesar do desconforto em relação às intimidades sexuais despertadas no claustro, o problema percebido sempre se resume ao fato de que esses homens estão comprometidos com o celibato, não de que eles são homens. Essa atividade sexual do mesmo sexo é tratada com menos preocupação do que os casos de monges que são acusados ​​de fazer sexo com mulheres fora do mosteiro. Enquanto as relações entre os monges são dissolvidas cortesmente e tratadas internamente, a relação sexual com mulheres muitas vezes leva à expulsão do monge da comunidade.

Em um exemplo surpreendente e revelador, o teólogo Maximos o Confessor do século VII, reflete sobre o que é que une as comunidades, afirmando que é a “afeição sensual” e os “desejos” (erota em grego) que fazem as criaturas se reunirem como uma só. É a partir dessa "faculdade erótica" que os animais se aglomeram, sendo atraídos "para um parceiro da mesma espécie que ele." Aqui, sua descrição do convívio baseia-se em uma linguagem de intimidades entre semelhantes, fornecendo amplas metáforas em grego para as filiações entre homens em comunidades monásticas e outros grupos sociais.

John Boswell, Homossexualidade na Idade Média, Homossexualidade e Cristianismo, Adelphopoiēsis, Aadelfopoiese
John Boswell
Mas espaços institucionalizados para intimidades do mesmo sexo não eram exclusivos do mundo monástico da Idade Média. Por exemplo, o rito de fraternidade espiritual ou adelphopoiēsis (adelfopoiese em português; literalmente, “fazer-irmãos”) unia dois homens em uma irmandade espiritual, ecoando certos elementos do rito do casamento. O processo foi proclamado de forma controversa pelo falecido historiador de Yale John Boswell como uma "união homossexual" medieval. Dizem-nos até que esses irmãos espirituais compartilhariam a mesma cama e viveriam vidas intimamente ligadas.

Embora os estudiosos ao longo dos anos tenham acrescentado muitas nuances ao argumento inicial de Boswell, eles também tentaram fortemente negar qualquer forma de desejo do mesmo sexo por trás do rito. Um manuscrito não publicado na Biblioteca do Vaticano, no entanto, conta uma história muito diferente. Neste texto, que só pode ser consultado em seu original grego medieval escrito à mão, o Patriarca de Constantinopla do século XIII, Atanásio I, escrevendo séculos após o início do rito, o condena porque supostamente "provoca coito e depravação". Neste período posterior, vemos uma resistência homofóbica recém-descoberta ao rito que, na pungência da reação, fala sobre o papel que esse rito poderia realmente desempenhar para os homens que se comprometem uns com os outros. As palavras do Patriarca reconhecem a realidade de que, não importa sua intenção, o rito possibilitou o espaço para intimidades sexuais entre homens. Que o rito de “fazer-irmãos” possivelmente permitiu espaço de manobra para homens que amam homens (HAH) pré-modernos é crítico para a história do Cristianismo.

Narrativas como essas nos levam a compreender as maneiras pelas quais as intimidades entre homens existiam em vários aspectos da vida religiosa, mesmo entre monges. Essas relações podem nem sempre ter sido valorizadas ou abraçadas, mas também não recebiam o ódio e a intensidade da pungência que encontram no cristianismo radicalizado hoje. Na verdade, as evidências que temos sugerem que na privacidade das comunidades monásticas e ritos como a adelphopoiēsis, os homens que amam homens tinham amplo espaço para existir em relacionamentos amorosos, muito além do que o arquivo foi capaz de preservar.

Nossas fontes escritas apontam obliquamente para a existência dessas relações, mas histórias detalhadas dessas intimidades são deixadas apenas como uma impressão, um esboço na areia de vidas agora perdidas que foram esquecidas pela história. Como historiadores, nosso papel não é simplesmente regurgitar o que foi escrito, mas ler nas entrelinhas. Essa é a única maneira de desenterrar as realidades dos sujeitos cujas vidas foram protegidas pelo segredo ou apagadas, muitas vezes de propósito, pela história que se seguiu.

Roland Betancourt é professor associado da Universidade da Califórnia, Irvine, e autor de Byzantine Intersectionality: Sexuality, Gender, and Race in the Middle Ages (Interseccionalidade Bizantina: Sexualidade, Gênero e Raça na Idade Média), disponível na Princeton University Press.

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