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"Pereçam miseravelmente aqueles que pensam que estes homens fizeram ou sofreram algo vergonhoso." (Filipe II da Macedônia sobre o Batalhão Sagrado de Tebas, o Exército de Amantes)

07 outubro 2022

Sérgio e Baco: Casal de Santos Militares

Homossexualidade na Idade Média, Homossexualidade e Cristianismo, Sérgio e Baco

 Hoje, 7 de outubro, é dia de São Sérgio e São Baco, soldados cristãos romanos do século IV reverenciados como mártires e santos militares pelas Igrejas Católica e Ortodoxa Oriental.

De acordo com sua hagiografia, Sérgio e Baco eram oficiais do exército do imperador romano Galério e foram mantidos em seu favor até serem expostos como cristãos secretos. Eles foram severamente punidos, com Baco morrendo durante tortura e Sérgio eventualmente decapitado.

Sérgio e Baco eram muito populares em toda a Antiguidade Tardia, e igrejas em sua homenagem foram construídas em várias cidades, incluindo Constantinopla e Roma. A estreita amizade entre os dois é fortemente enfatizada em suas hagiografias e tradições, tornando-os um dos exemplos mais famosos de pares de santos. Essa proximidade levou o historiador John Boswell a sugerir que o relacionamento deles era romântico; embora outros historiadores tenham rejeitado essa teoria, ela levou à veneração popular de Sérgio e Baco entre os homens que amam homens da comunidade cristã e também fora dela.

Homossexualidade na Idade Média, Homossexualidade e Cristianismo, Sérgio e Baco
Santos Sérgio e Baco. Ícone do século VII do Mosteiro de Santa Catarina no Monte Sinai em Israel
Antes que as categorias de orientação sexual do século XIX rotuladas como “homossexualidade” e "heteressoxualidade" fosse inventadas, não havia uma maneira de categorizar muitos daqueles que hoje esperávamos que fossem, ou consideraríamos, "gays" ou "lésbicas". A criação e posterior demonização de categorias modernas de orientação sexual e identidade de gênero que não são suficientemente "héteros" pelas definições de hoje levantaram reclamações sobre o que foi ignorado sobre as pessoas que amam o mesmo sexo (AMS) na história.

Mas isso também invocou respostas negativas ao reexame de documentos históricos sem reações andro-homofóbicas modernas, respostas que gastam muito esforço tentando provar que esses exemplos não eram realmente amantes, mas “amigos, irmãos, irmãs” (ou "apenas primos", como no caso de Aquiles e Pátroclo) que expressavam seu amor mais intimamente do que irmãos e amigos fariam nas culturas aparentemente mais andro-homofóbicas de hoje.

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Santo Amor (Holy Love) — Sérgio e Baco como patronos do amor por William Nino Neuta
Reverenciados na História

Em outubro, o Mês Internacional da História 'Gay' — curiosamente e para o desgosto de muitos cristãos “tradicionais” —, o cristianismo celebra a tradicional festa de São Sérgio e São Baco, dois santos retratados ao longo da longa história de sua veneração como amorosamente comprometidos um com o outro em uma profundidade inquestionável até o surgimento dessa categoria moderna de “homossexual” e a necessidade reacionária de negar que eram amantes por aqueles preocupados que a dupla há muito venerada pudesse se qualificar.

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Sts. Sérgio e Baco, ícone ortodoxo
Este casal do século IV era particularmente popular em toda a área do Mediterrâneo. Por quase mil anos Sérgio e Baco foram os protetores celestiais e patronos oficiais do exército bizantino. Referências ao relacionamento deles eram regularmente invocadas em rituais para parcerias do mesmo sexo entre homens.

Tal como acontece com tanta suposta “história” de santos e mártires, temos pouca base para autenticar os detalhes das reivindicações históricas feitas na literatura devocional altamente estilizada e idealizada sobre esses dois. Como os outros mártires, muita coisa é posterior, sobrecarregada e inverificável. O que podemos dizer é que esse casal amoroso foi levado a sério o suficiente para ser reverenciado ao longo da história, bem como para ter santuários construídos para eles. O túmulo de Sérgio em Resafa, Síria, tornou-se um famoso santuário; por causa disso, a cidade recebeu o novo nome de Sergiópolis por volta do ano 425. No ano de 431, o bispo Alexandre de Hierápolis construiu uma magnífica igreja em sua homenagem. Em 434, a cidade de Sergiópolis foi elevada à categoria de sede episcopal. Mais tarde, o imperador Justiniano I a ampliou e fortificou e Sergiópolis se tornou um dos locais de peregrinação mais populares do Oriente.

Basílica de São Sérgio, Sergiópolis, Sérgio e Baco
Basílica de São Sérgio, Rasafa (antiga Sergiópolis), Síria
A construção de uma Igreja dos Santos Sérgio e Baco em Istambul em 527 foi um dos primeiros atos do reinado de Justiniano I. De fato, outra lenda diz que ambos os santos apareceram ao imperador Justino, tio de Justiniano, para salvar Justiniano, garantindo a inocência de Justiniano em um complô contra o trono.

Pequena Santa Sofia (Igreja de São Sérgio e São Baco), Istambul, Turquia, Sérgio e Baco
Pequena Santa Sofia (Igreja dos Santos Sérgio e Baco), Istambul, Turquia
Partes das relíquias de Sérgio foram transferidas para Veneza, onde esses santos eram patronos da antiga catedral. E no século IX uma igreja havia sido dedicada a ambos em Roma.

Em busca de Sérgio e Baco

Seus “Atos” foram recontados ao longo da história e preservados em latim, grego e siríaco. Embora se diga que eles foram martirizados no século IV, o texto grego conhecido como A Paixão de Sérgio e Baco é provavelmente de um século depois. [N/T: "Paixão", aqui, obviamente não se refere ao amor entre eles, mas ao martírio que sofreram, assim como também falamos da "Paixão de Cristo"]

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Sts. Sérgio e Baco por Plamen Petrov,
Igreja de Santa Marta, Morton Grove, EUA
Sérgio e Baco eram militares de alta patente de acordo com a lenda. Assim, eles não são apenas exemplos de um par de santos, mas de um ideal no folclore popular mais amplo das relações íntimas homem/homem entre soldados e guerreiros que fascina muitas culturas há séculos. Veja, por apenas um exemplo, o amor da dupla de guerreiros bíblicos Davi e Jônatas.

O texto é repleto de material estilizado e padronizado, não muito diferente daquele encontrado na infinidade de lendas de mártires cristãos, mas os detalhes dos dias de suas torturas e mortes enfatizam não apenas sua fé religiosa, mas a intimidade de seu relacionamento. Porque eles se recusaram a adorar os deuses romanos e exaltaram o Cristo do cristianismo, eles foram primeiro humilhados ao serem exibidos na jornada para a morte final em roupas femininas. Então eles foram separados e torturados com Baco sendo assassinado primeiro.

Esse texto fundamental diz que enquanto Sérgio esperava em sua cela na noite seguinte à morte de Baco, o espírito de Baco apareceu para ele, dizendo a Sérgio para não desanimar, pois não apenas as alegrias do céu eram maiores do que qualquer sofrimento que ele suportaria, mas que sua recompensa seria se reunir com Baco no céu.

Observe como a essência da mensagem que Baco traz é enquadrada no texto que foi transmitido ao longo da história em termos de perda um do outro:

Por que você sofre e chora, irmão? Se eu fui tirado de você em corpo, ainda estou com você no vínculo da união, cantando e recitando: “Eu seguirei o caminho dos teus mandamentos, quando tu aumentares o meu coração”. Apresse-se então, irmão, através da bela e perfeita confissão para perseguir e obter a mim, ao terminar o curso. Pois a coroa da justiça para mim está com você. (tradução para o inglês de John Boswell, tradução para o português do dono deste blog)

Sérgio e Baco por uma lente moderna

Homossexualidade na Idade Média, Homossexualidade e Cristianismo, Sérgio e Baco, Robert Lenz
Ícone de Sérgio e Baco por Robert Lenz (1994)
Ninguém se preocupou se isso era ou não um relacionamento sexual romântico entre dois amantes guerreiros — aparentemente não se importavam — por 1.600 anos. Mas então um distinto historiador medieval da Universidade de Yale, John Boswell, começou a olhar para documentos pré-modernos sem o viés institucional moderno que dominava os historiadores medievais da Igreja, que eram em sua maioria católicos romanos.

Boswell sabia que estava lutando contra as tradições andro-homofóbicas arraigadas estabelecidas. Assim, todos os seus escritos são dominados por cuidadosas discussões históricas metodológicas, extensas notas de rodapé (quase metade de cada livro), apêndices, documentos originais e traduções como evidência dos estudos medievais que ele revirou.

A resposta ao seu trabalho foi tanto elogios quanto críticas conservadoras esperadas e previsíveis. Mas apesar de tudo, Sérgio e Baco permaneceram como ícones de um relacionamento íntimo entre pessoas do mesmo sexo que a andro-homofobia só tentou apagar no último quarto de século.

Reconhecemos que os historiadores não podem conhecer com certeza a história real desse casal, descrito no material mais antigo que temos sobre eles como erastai (“amantes” em grego antigo, derivado da palavra eros, "desejo, amor apaixonado"). Mas o que sabemos é que sua santidade foi celebrada ao longo da história como um modelo de amor masculino um pelo outro sem medo do que isso significava sobre a natureza íntima, romântica ou sexual de seu relacionamento.

Homossexualidade na Idade Média, Homossexualidade e Cristianismo, Sérgio e Baco
Santo Amor (Holy Love) — Sérgio e Baco como patronos do amor por William Nino Neuta
Somente nas últimas décadas com a andro-homofobia moderna alguém tentou argumentar que eles não eram tão íntimos quanto os documentos que temos dizem que provavelmente eram, embora a maioria das críticas ao trabalho de Boswell visa rejeitar suas sugestões de que havia cerimônias de união do mesmo sexo para casais românticos na igreja pré-moderna conhecidas como adelfopoiese.

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Sts. Sérgio e Baco, ícone ortodoxo
Em suma, por que não reconhecer a idealização secular do amor profundo e até romântico de Sérgio e Baco um pelo outro? E por que não celebrar um amor tão profundo onde quer que seja retratado? Andro-homofobia? Muito subversivo ao dogma anti-HAH? Demasiado ameaçador para as reivindicações históricas institucionais da Igreja anti-HAH autorizadas?

O medo de tais idéias é tanto que significa que alguns têm que rejeitar até mesmo a possibilidade de tal amor? Ou os rejeitadores ainda são produtos de uma cultura heteronormativa moderna onde um soldado pode receber uma medalha por matar outro homem, mas ser morto por amar um?

Via Whosoever.

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