Aviso aos nossos inimigos:

"Pereçam miseravelmente aqueles que pensam que estes homens fizeram ou sofreram algo vergonhoso." (Filipe II da Macedônia sobre o Batalhão Sagrado de Tebas, o Exército de Amantes)

15 setembro 2022

Harmódio e Aristógito

Harmódio e Aristógito

 Harmódio (em grego: Ἁρμόδιος, Harmódios) e Aristógito (Ἀριστογείτων, Aristogeíton; ambos morreram em 514 AEC) foram dois amantes na Atenas Clássica que ficaram conhecidos como os Tiranicidas pelo assassinato de Hiparco, irmão do tirano Hípias, pelo qual foram executados. Alguns anos depois, em 510 AEC, o rei espartano Cleômenes I forçou Hípias a se exilar, abrindo caminho para as posteriores reformas democráticas de Clístenes. Os democratas atenienses mais tarde celebraram Harmódio e Aristógito como heróis nacionais, parcialmente para esconder o papel desempenhado por Esparta na remoção da tirania ateniense. Clístenes comissionou as famosas estátuas dos Tiranicidas.

Nada melhor do que falarmos sobre esses heróis divinos hoje, 15 de setembro, quando comemoramos o Dia Internacional da Democracia.

Pano de fundo

Harmódio e Aristógito
Harmodius e Aristogeiton, Nápoles.
Cópia romana da versão ateniense
por Crítios e Nesíotes
As duas principais fontes históricas sobre Harmódio e Aristógito são a História da Guerra do Peloponeso por Tucídides, e A Constituição dos Atenienses atribuída a Aristóteles ou sua escola. No entanto, sua história é documentada por muitos outros escritores antigos, incluindo fontes importantes como Heródoto e Plutarco. Heródoto afirmou que Harmódio e Aristógito presumivelmente eram "gefireus", ou seja, beócios de origem síria ou fenícia. Plutarco, em seu livro Sobre a malícia de Heródoto, criticou Heródoto por preconceito e deturpação e argumentou que Harmódio e Aristógito eram de Erétria na ilha de Eubeia (vizinha à península da Ática, onde fica Atenas).

Pisístrato tornou-se tirano de Atenas após sua terceira tentativa em 546/7 AEC (em sua segunda tentativa [559–556], um dos polemarcas [comandantes militares] atenienses em 557–556 foi Carmo de Colitos [Charmus de Kolyttus, um demo na Ática junto a Atenas], que tinha sido eromenos [amante mais jovem] de Pisístrato; Carmo foi o primeiro ateniense a dedicar um altar a Eros, deus do amor — ele a pôs na Academia de Atenas, onde os corredores da corrida da tocha sagrada na Panateneia acendem suas tochas). Na Grécia arcaica, o termo tirano não conotava malevolência. Um tirano era aquele que havia tomado o poder e governado fora da lei constitucional de um estado. Quando Pisístrato morreu em 528/7 AEC, seu filho Hípias assumiu a posição de arconte (governador) e se tornou o novo tirano de Atenas, com a ajuda de seu irmão Hiparco, que atuou como ministro da cultura. Os dois continuaram as políticas de seu pai, mas sua popularidade diminuiu depois que Hiparco começou a abusar do poder de sua posição.

Harmódio e Aristógito
Tucídides oferece esta explicação para as ações de Harmódio e Aristógito no Livro VI: Hiparco aproximou-se de Harmódio (o mais novo do casal, considerado grande beleza) com intenções amorosas. Harmódio era o eromenos de Aristógito, um cidadão de condição média. Harmódio rejeitou Hiparco e contou a Aristógito o que havia acontecido. Hiparco, desprezado, convidou a irmã mais nova de Harmódio para ser a canéfora (kanephoros, quem carrega a cesta de oferendas cerimoniais) no festival da Panateneia Maior em honra da deusa Atena, padroeira da cidade (a Panateneia Maior ocorria a cada quatro anos, enquanto a Panateneia Menor ocorria anualmente, em torno do final de julho e início de agosto; na Maior ocorriam competições atléticas), então a expulsou publicamente sob o pretexto de que ela não era virgem, como exigido para o festival, causando vergonha na família de Harmódio. Com seu amante Aristógito, Harmódio resolveu assassinar Hiparco e Hípias como vingança e, assim, derrubar a tirania. Harmódio e Aristógito mataram Hiparco com sucesso durante a Panatenaia de 514 AEC, mas Hípias sobreviveu e permaneceu no poder. Nos quatro anos entre o assassinato de Hiparco e a deposição dos Pisistrátidas (isto é, os filhos de Pisístrato), Hípias tornou-se um tirano cada vez mais opressivo.

De acordo com Aristóteles, foi Téssalo, o filho de cabeça quente da concubina argiva de Pisístrato e, portanto, meio-irmão de Hiparco, quem insistentemente cortejou Harmódio, sem sucesso, e, para atingi-lo, humilhou sua irmã, mas ao invés de atacar a virgindade dela, Téssalo insultou Harmódio para ela, dizendo ser ele afeminado, o que provocou a ira de Harmódio e, claro, também de Aristógito.

O assassinato

A trama — a ser realizada por meio de punhais escondidos nas coroas de murtas (mirto) cerimoniais por ocasião dos Jogos Panatenaicos — envolveu vários outros co-conspiradores. Tucídides afirma que este dia foi escolhido porque durante o festival panatenaico era costume os cidadãos que participavam da procissão irem armados, enquanto portar armas em qualquer outro dia seria suspeito. Aristóteles discorda, afirmando que o costume de portar armas foi introduzido mais tarde, pela democracia.

Harmódio e Aristógito
Pintura em vaso mostrando Aristógito (esq.) e Harmódio (dir.) matando Hiparco
Vendo um dos co-conspiradores cumprimentar Hípias de maneira amigável no dia designado, os dois se julgaram traídos e entraram em ação, arruinando os planos cuidadosamente traçados. Eles conseguiram matar Hiparco, esfaqueando-o até a morte enquanto ele organizava as procissões panatenaicas ao pé da Acrópole. Heródoto expressa surpresa com este evento, afirmando que Hiparco havia recebido um aviso claro sobre seu destino em um sonho. Harmódio foi morto no local por lanceiros dos guardas de Hiparco, enquanto Aristógito foi preso pouco depois. Ao ser informado do evento, Hípias, fingindo calma, ordenou aos gregos em marcha que largassem suas armas cerimoniais e se reunissem no local indicado. Todos aqueles com armas escondidas ou sob suspeita foram presos, dando a Hípias um descanso da revolta.

A identificação de Hípias por Tucídides como o suposto alvo principal dos dois, em vez de Hiparco, que era erastes rival de Aristógito, foi sugerida como uma possível indicação de parcialidade de sua parte.

A tortura de Aristógito

Harmódio e Aristógito
Mesmo após perder Harmódio e ser torturado,
Aristógito mostrou coragem até a morte
Aristóteles na Constituição de Atenas preserva a tradição de que Aristógito morreu apenas depois de ser torturado na esperança de ele revelar os nomes dos outros conspiradores. Durante sua provação, supervisionada pessoalmente por Hípias, ele fingiu vontade de trair seus co-conspiradores, alegando apenas o aperto de mão de Hípias como garantia de segurança. Ao receber a mão do tirano, ele supostamente o repreendeu por apertar a mão do assassino de seu próprio irmão, pelo quê o tirano se virou e o matou no local com uma punhalada.

Leaina

Da mesma forma, há uma tradição posterior de que Aristógito (ou Harmódio) estava apaixonado por uma cortesã (hetaera) chamada Leaina (Λέαινα — "Leoa") que também foi mantida por Hípias sob tortura — em uma tentativa vã de forçá-la a divulgar os nomes dos outros conspiradores — até que ela morreu. Uma versão de sua história afirma que, antes de ser torturada, ela mordeu a língua, com medo de que sua determinação quebrasse com a dor da tortura. Outra é que os atenienses, não querendo honrar uma cortesã, colocaram uma estátua de uma leoa sem língua no vestíbulo da Acrópole simplesmente para honrar sua coragem em manter o silêncio. A estátua foi feita pelo escultor Anfícrates. Pausanias alega que foi em sua homenagem que as estátuas atenienses de Afrodite passaram a ser acompanhadas por leoas de pedra. A história de Leaina, no entanto, só é contada em fontes posteriores da antiguidade e é provavelmente espúria (inventada).

Consequências

O assassinato de seu irmão levou Hípias a estabelecer uma tirania ainda mais rígida, que se mostrou muito impopular e foi derrubada, após a intervenção de um exército de Esparta liderado pelo rei Cleômenes I, em 510. Seguiu-se as reformas de Clístenes, que estabeleceu um democracia em Atenas.

Apoteose

Harmódio e Aristógito
A história posterior veio a identificar as figuras de Harmódio e Aristógito como mártires da causa da liberdade ateniense, possivelmente por razões políticas e de classe, e eles ficaram conhecidos como "os Libertadores" (eleutherioi) e "os Tiranicidas" (tyrannophonoi). De acordo com escritores posteriores, descendentes das famílias de Harmódio e Aristógito receberam privilégios hereditários, como sitesis (o direito de tomar refeições às custas públicas na prefeitura), ateleia (isenção de certos deveres religiosos) e proedria (assentos na primeira fila no teatro). Alguns anos após o evento, tornou-se uma tradição entre os atenienses acreditar que Hiparco era o mais velho dos irmãos e moldá-lo como o tirano. A história dos tiranicidas foi fortemente promovida pelos atenienses para apagar o constrangimento de dever a remoção de sua tirania a Esparta.

Estátuas e representações artísticas

Após o estabelecimento da democracia, Clístenes encomendou ao escultor Antenor a produção de um grupo de estátuas de bronze de Harmódio e Aristógito. Foi a primeira encomenda desse tipo e a primeira estátua a ser paga com fundos públicos, pois os dois foram os primeiros gregos considerados por seus compatriotas dignos de receber estátuas. De acordo com Plínio, o Velho, foi erguido no bairro Cerâmico (Kerameikos, o bairro dos oleiros da cidade, de onde deriva a palavra "cerâmica", e foi também o local de um importante cemitério e inúmeras esculturas funerárias) em 509, como parte de um cenotáfio dos heróis. No entanto, uma localização muito mais provável é na Ágora de Atenas, e muitos autores posteriores, como Pausânio e Timeu, atestam isso. Oferendas anuais (enagismata) foram apresentadas lá pelo polemarca, o ministro da guerra ateniense. Lá o grupo escultórico ficou sozinho, pois leis especiais proibiam a ereção de quaisquer outras estátuas nas proximidades. Sobre sua base estava inscrito um verso do poeta Simônides:

Uma grande luz maravilhosa brilhou sobre Atenas quando Aristógito e Harmódio mataram Hiparco.

Harmódio e Aristógito
A obra foi levada como espólio de guerra em 480 AEC por Xerxes I durante as primeiras guerras greco-persas e instalada por ele em Susa (no atual Irã). Assim que os gregos derrotaram os persas em Salamina, uma nova estátua foi encomendada. Foi esculpida desta vez por Crítios e Nesíotes, e montada em 477/476 AEC. Essa é a que serviu de modelo para o grupo que possuímos hoje, que foi encontrado nas ruínas da Vila de Adriano e agora está em Nápoles, Itália (a cabeça barbada de Aristógito não é original). Segundo Arriano, quando Alexandre, o Grande, conquistou o Império Persa, em 330, ele descobriu a obra em Susa e a enviou de volta a Atenas. Quando as estátuas, em sua viagem de volta, passaram pela ilha de Rodes, receberam honras divinas.

Vários comentários dos antigos sobre a obra chegaram até nós. Quando perguntado, na presença de Dionísio, o tirano de Siracusa, qual tipo de bronze era o melhor, Antífon, o Sofista, respondeu:

Aquele de que os atenienses fizeram as estátuas de Harmódio e Aristógito.

Harmódio e Aristógito
Licurgo, em seu discurso contra Leócrates, afirma que

no resto da Grécia você encontrará estátuas erguidas em lugares públicos para os conquistadores nos jogos, mas entre vocês elas são dedicadas apenas a bons generais e àqueles que destruíram tiranos.

Outros escultores fizeram estátuas dos heróis, como Praxíteles, que fez duas, também de bronze.

O grupo de estátuas tem sido visto, na modernidade, como um convite a identificar-se erótica e politicamente com as figuras e a tornar-se um tiranicida. De acordo com Andrew Stewart, a obra

não apenas colocou o vínculo homoerótico no cerne da liberdade política ateniense, mas afirmou que ele e as virtudes viris (aretai) de coragem, ousadia e auto-sacrifício que ele gerava eram os únicos garantes da existência contínua dessa liberdade.

Harmódio e Aristógito no Trono Elgin
Trono Elgin (clique na imagem para ver
ampliada a figura de Harmódio e Aristógito)
A configuração do grupo é duplicada em um vaso pintado (entre outros), uma ânfora panatenaica do ano 400 AEC (ceja abaixo), e em um baixo-relevo no Trono Elgin, uma cadeira cerimonial de mármore datado do século IV AEC que foi originalmente colocada em um espaço público em Atenas, talvez no Teatro de Dioniso no sopé da Acrópole, onde teria sido um assento de honra.

Harmódio e Aristógito no escudo da deusa Atena, Ânfora Panatenaica
Ânfora Panatenaica (425-400 aC), Museu Britânico.
Note a escultura de Harmódio e Aristógito no escudo da deusa Atena.

Hino a Aristógito e Harmódio

Outra homenagem aos dois heróis foi um hino (skolion, escólio) elogiando-os por restaurar a isonomia (distribuição igual da justiça) aos atenienses. O skolion pode ser referido em torno de 500 AEC e é atribuído a Calístrato, um poeta ateniense conhecido apenas por este trabalho. É preservado por Atenaios. Sua popularidade era tal que

em cada banquete, ou melhor, nas ruas e na mais medíocre assembléia do povo comum, essa ode convivial era cantada diariamente.

Quando cantado, o cantor segurava um ramo de mirto (murta) na mão, em referência à coroa de mirto que o casal usava durante o ataque. Esta ode foi traduzida por muitos poetas modernos, como Edgar Allan Poe, que compôs seu Hino a Aristógito e Harmódio em 1827. A tradução a seguir do inglês para o português encontrei no Templo Cultural Delfos:

I

Mirto, também chamado de murta

COM GRINALDAS de mirto, embainho a espada
como a desses campeões de almas serenas
quando, em peito tirano mergulhada,
restituía a liberdade a Atenas.

II

Heróis! Vossa alma eterna se alcandora
nas ilhas de ventura abençoada
em que descansam os titãs de outrora
e Diomedes e Aquiles têm morada.

III

De mirto verde adornei meu gládio,
Como Harmódio, fidalgo e bom, fazia,
ao derramar, sobre a ara do Paládio,
o sangue, em libação, da Tirania.

IV

Vós livrastes Atenas de opressões,
vingastes o mal feito à liberdade
e vossa fama irá, de idade a idade, 
embalsamada no eco das canções.

Importância para a tradição erastes-eromenos

Harmódio e Aristógito atacando Hiparco e Hípias em Cassell's Illustrated Universal History, Vol. I - Early and Greek History
Harmódio e Aristógito atacando Hiparco e Hípias
em Cassell's Illustrated Universal History,
Vol. I - Early and Greek History
A história de Harmódio e Aristógito, e seu tratamento por escritores gregos posteriores, é ilustrativa das atitudes em relação à pederastia na Grécia antiga. Tanto Tucídides quanto Heródoto descrevem os dois como amantes, seu caso de amor foi denominado como moderado (sofron) e legítimo (dikaios). Confirmando ainda mais o status dos dois como paradigmas da ética pederástica, um domínio proibido aos escravos, foi aprovada uma lei proibindo os escravos de receber o nome dos dois heróis.

A história continuou a ser citada como um exemplo admirável de heroísmo e devoção por muitos anos. Em 346 AEC, por exemplo, o político Timarco foi processado (por motivos políticos) sob a alegação de que se prostituía quando jovem. O orador que o defendeu, Demóstenes, que era andrófilo, citou Harmódio e Aristógito, bem como Aquiles e Pátroclo, como exemplos dos efeitos benéficos das relações amorosas entre homens. Ésquines os oferece como um exemplo de dikaios erōs, "amor justo", e como prova dos benefícios que esse amor traz aos amantes — que eram melhorados pelo amor além de todos os elogios — e também à cidade.

Harmódio e Aristógito (moeda antiga)
Moeda cunhada em Cízico (na atual Turquia) no século V AEC mostra o casal
(Harmódio está atrás de Aristógito)
Fonte: Harmodius and Aristogeiton (Wikipedia)História da Guerra do Peloponeso de Tucídides e A Constituição dos Atenienses de Aristóteles.

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