O Guerreiro Aquileu

 Embora não estejamos lutando uma guerra tradicional, somos soldados mesmo assim, soldados que, quando chamados, desembainharão suas espadas para proteger os mais jovens da dor que eles sofreram, soldados recrutados para um exército não por escolha, mas pela providência.

Chega um ponto na história em que um homem é posto à prova e pode falhar ou ter sucesso. Ele pode se esconder, envergonhado, e retornar ao seu lugar de conforto, ou pode permanecer firme e lutar. Hoje, um batalhão de homens se mantém firme, preparado para outra vitória. Batalha sangrenta após batalha sangrenta, eles permanecem os campeões da liberdade e os reis sobre os derrotados, compartilhando os despojos de uma guerra que nunca deveria ter sido travada.

A guerra continua, e o inimigo continua a lutar. Como nas guerras do passado, irmão é colocado contra irmão, vizinho contra vizinho. Propriedade é apreendida, e vidas são perdidas. Cada homem se junta às fileiras da campanha com quem sua consciência se relaciona. Lágrimas são derramadas enquanto mães assistem seus filhos marcharem para as linhas de frente; se eles retornarem para casa, eles retornarão mais fortes.

O conflito, como muitos antes, começou em algumas de nossas instituições mais pacíficas, lugares que, até agora, eram considerados refúgios seguros e bastiões de paz e deveriam ser os últimos lugares onde as hostilidades surgiriam. Essas escolas, igrejas e lares são onde os primeiros tiros foram disparados. Ninguém pretendia que esses pequenos conflitos se transformassem em uma guerra completa, mas eles se transformaram. Alguns dos primeiros projéteis lançados foram palavras como "viado", "bicha" e "gay", disparadas pelas bocas dos agressores como um obus. Os pequenos desentendimentos logo se transformaram em contendas, facções foram formadas e o debate varreu a arena política, onde nossos líderes logo seriam forçados a tomar partido.

E foi assim que tudo começou.

19 de dezembro de 1994, 21h, em uma casa senhorial na Saint Albans Street em St. Paul, Minnesota, Estados Unidos. A luz da cozinha se apaga. Kyle, de dezessete anos, acaba de terminar seu dever de casa quando sua mãe e seu pai entram em seu quarto com seu diário em mãos. A mãe pergunta se as coisas sobre ele no diário são verdadeiras. Kyle acena com a cabeça afirmativamente. O pai responde: "Bem, então temo que você não seja mais bem-vindo em nossa casa."

Culto de domingo de manhã na Igreja Anglicana de Uganda em Bukusa, Mukono, Uganda, 2004. David e sua família sentam-se no banco da frente, prontos para o sermão iminente. Quinze minutos depois, o rosto de David fica roxo de raiva, constrangimento e medo quando o pastor começa a gritar sobre a abominação dos homossexuais, clamando por pena de morte em vez da prisão perpétua, como era prevista pela lei do país.

22 de maio de 1989, 14h30, do lado de fora de uma escola secundária em Salvador, Bahia, Brasil. Luiz está a caminho de casa quando é parado por três colegas de outra turma, que começam a zombar dele falando com trejeitos e dançando ao redor dele, ridicularizando seu comportamento pouco masculino. Então, a provocação se transforma em empurrões, e os empurrões se transformam em socos e chutes. Depois que os valentões se cansam, Luiz fica ali no chão, física e emocionalmente esmagado.

Embora com anos de diferença, a experiência de cada garoto permanece com ele, crescendo ano após ano no que parece uma bola de fogo no fundo do estômago. Os eventos não são isolados. Cada um é marcado pela extinção de um raio de luz onde antes havia esperança. Uma a uma, pequenas partes do mundo escurecem onde um jovem perdeu uma parte de sua alma, sua inocência roubada por atos de crueldade. Envergonhados e despedaçados, cada um dos feridos busca desesperadamente um amigo e uma identidade, e é por meio dessa busca pela fraternidade que um vínculo comum é encontrado. Onde antes havia um vácuo frio, agora brilha um feixe radiante. Em algum momento dos últimos anos, ocorreu um ponto de virada. Um a um, os raios de luz retornam. Flashes de confiança se intensificam à medida que a coragem de ser você mesmo se torna mais uma realidade do que um sonho. Em pouco tempo, o mundo se ilumina como um pulsar à medida que a força é composta pela exposição de feridas compartilhadas e pela camaradagem do combate.

À medida que os guerreiros se unem em fraternidade, lutando como o Batalhão Sagrado de Tebas, nos tornamos imparáveis ​​e destemidos. Voltamos da batalha, endurecidos e ousados, como aço finamente temperado, transformados de um pedaço de ferro fraco em uma peça de maquinário sólida, resistente ao estresse e brilhante. Embora não estejamos lutando uma guerra tradicional, somos soldados mesmo assim, soldados que, quando chamados, desembainharão suas espadas para proteger os mais jovens da dor que eles suportaram, soldados recrutados para um exército não por escolha, mas pela providência. Guiados pelo Divino, somos soldados que continuarão a marchar de frente para a falange de uma força perversa, mas determinada, não por orgulho, mas porque é a coisa certa a fazer.

E quando a guerra acabar, embora isso possa nunca acontecer, não celebraremos, mas lamentaremos por nossos irmãos feridos em batalha. Não, não nos deleitaremos com a vitória, mas lamentaremos por nossos irmãos que perderam suas vidas em uma guerra que nunca deveria ter sido travada. Mas, por enquanto, estamos juntos, uma luz brilhante de coragem e bravura, como guerreiros aquileus*.

Adaptado de The Gay Warrior, por James B. Owens.

* Escolhi o termo "aquileu" em vez do sinônimo mais popular "aquileano" por ser uma tradução mais correta de 'achillean' e mais próxima do nome original do herói Aquiles em grego, Ἀχιλεύς (Akhileús [pronúncia aproximada: Ahrriléfs), que se refere a homens que amam homens em geral, independente da orientação afetossexual, e também por ser mais curto e soar mais conciso ao falar. Também escolhi substituir "gay" por "aquileu" por este não carregar as conotações negativas que aquele possui em nossa cultura, e também para abarcar mais abrangemente a experiência da andro-homofobia (homofobia direcionada a homens, os principais alvos dessa forma de ódio) sofrida pelos garotos e homens que amam o mesmo sexo.

N/T: Os casos de "David" em Uganda e "Luiz" no Brasil não estão no texto original, que apresentou apenas estórias de garotos nos EUA, e eu quis diversificar. David faz referência a David Kato, um professor ugandense e ativista dos direitos 'LGBT', considerado um pai do movimento pelos direitos homoafetivos de Uganda e descrito como "o primeiro homem assumidamente 'gay' de Uganda". Ele foi assassinado a golpes de martelo na cabeça em sua casa em 26 de janeiro de 2011, logo após vencer um processo contra uma revista local que havia publicado seu nome e fotografia identificando-o como 'gay' e pedindo sua execução. E Luiz faz referência ao professor, antropólogo e historiador brasileiro Luiz Mott, ativista dos direitos homoafetivos e fundador do Grupo Gay da Bahia, organização premiada e pioneira na defesa dos direitos humanos da população 'LGBT' no Brasil.

Se você gostou deste artigo, por favor deixe um comentário abaixo e/ou compartilhe, e considere seguir o blog (clicando no botão "Seguir" ou "Follow" à direita da página em "SEGUIDORES").