Arte de Hideki Koh |
Registros de homens que fazem sexo com homens no Japão datam de tempos antigos. Embora essas relações existissem no Japão por milênios, elas se tornaram mais aparentes para os estudiosos durante o período Tokugawa (ou Edo). Práticas históricas identificadas pelos estudiosos como do mesmo sexo incluem shudō (衆道), wakashudō (若衆道) e nanshoku (男色).
Arte de Hideki Koh |
Durante o Período Meiji (1868 a 1912), nanshoku começou a ser desencorajado devido à ascensão da sexologia no Japão e ao processo de ocidentalização.
Termos modernos incluem dōseiaisha (同性愛者, literalmente "pessoa que ama o mesmo sexo"), okama (お釜, "chaleira/caldeirão", gíria para "homens gays afeminados"), gei (ゲイ, "gay"), homo (ホモ) ou homosekusharu (ホモセクシャル, "homossexual"), onabe (お鍋, "pote/panela", gíria para "lésbica"), bian (ビアン)/rezu (レズ) e rezubian (レズビアン, "lesbian/lésbica").
Japão Pré-Meiji
Historicamente, a religião xintoísta "não teve nenhum código especial de moral e parece ter considerado o sexo como um fenômeno natural a ser desfrutado com poucas inibições" (Louis Crompton, Pre-Meiji Japan: Homosexuality and Civilization, 2003). Embora as crenças xintoístas sejam diversas, o xintoísmo japonês não condena a homossexualidade. Uma variedade de referências literárias obscuras ao amor entre pessoas do mesmo sexo existe em fontes antigas, como a mitologia japonesa, mas muitas delas são tão sutis que não são confiáveis; outra consideração é que eram comuns as declarações de afeto por amigos do mesmo sexo.
No entanto, referências existem e tornam-se mais numerosas no período Heian, aproximadamente no século 11. Por exemplo, em O Conto de Genji (Genji Monogatari 源氏物語), escrito no início do século 11 e considerado o primeiro romance do mundo, os homens frequentemente se emocionam com a beleza de jovens rapazes. Em uma cena, o herói protagonista, Hikaru Genji, rejeita uma dama e, em vez disso, dorme com o irmão mais novo dela: "Genji puxou o rapaz para o lado dele ... Genji, por sua vez, ou assim se sabe, achou o rapaz mais atraente do que sua fria irmã". O Conto de Genji é um romance, mas existem vários diários da era Heian que contêm referências a atos e práticas homoeróticas. Alguns deles contêm referências a imperadores envolvidos em relacionamentos do mesmo sexo com "rapazes bonitos retidos para fins sexuais".
Homoerotismo monástico
Relacionamentos nanshoku dentro dos mosteiros budistas eram tipicamente pederásticos: um relacionamento estruturado por idade em que o parceiro mais jovem não é considerado adulto. O parceiro mais velho, ou nenja (念者, "amante" ou "admirador"), seria um monge, sacerdote ou abade, enquanto o parceiro mais jovem era considerado um acólito (稚児, chigo, "garoto"), que seria um garoto pré-púbere ou adolescente; o relacionamento seria dissolvido quando o garoto atingisse a idade adulta (ou deixasse o mosteiro). Ambas as partes eram encorajadas a tratar o relacionamento com seriedade e conduzi-lo com honra, e o nenja podia ser obrigado a escrever um voto formal de fidelidade. Fora dos mosteiros, os monges eram considerados como tendo uma predileção particular por prostitutos masculinos, o que era objeto de muito humor obsceno.
Utagawa Kuniyoshi, Velho Budista (século 18) |
Shudō samurai
Ishikawa Toyonobu, Wakashu com um Carrinho de Flores (séc. 18) |
Esta prática, juntamente com a pederastia clerical, desenvolveu-se no sistema codificado de relação do mesmo sexo estruturada por idade conhecida como shudō, abreviado de wakashūdō, o "caminho (dō) do wakashū (rapaz adolescente)". O parceiro mais velho, no papel de nenja, ensinaria as habilidades marciais, a etiqueta do guerreiro e o código de honra samurai para o chigo, enquanto seu desejo de ser um bom modelo para seu chigo o levaria a se comportar com mais honra; assim, um relacionamento shudō era considerado como tendo um "efeito mutuamente enobrecedor". Além disso, esperava-se que ambas as partes fossem leais até a morte e se ajudassem tanto nos deveres feudais quanto nas obrigações de honra, como duelos e vinganças. Embora se esperasse que o sexo entre o casal terminasse quando o garoto atingisse a maioridade, o relacionamento, idealmente, se desenvolveria em um vínculo de amizade para toda a vida. Ao mesmo tempo, a atividade sexual com mulheres não era proibida (para nenhuma das partes), e uma vez que o garoto atingisse a maioridade, ambos eram livres para procurar outros amantes wakashū.
Utagawa Hiroshige, um samurai e seu aprendiz (cerca de 1840) |
Escritos sobre a vida de Miyamoto Musashi, o maior samurai da história do Japão, raramente mencionam seu relacionamento com mulheres, e muitas vezes, quando o fazem, Musashi é regularmente descrito como rejeitando avanços sexuais em favor de se concentrar em sua arte da espada. Interpretações alternativas tomaram essa falta de interesse pelo sexo feminino como uma indicação de homossexualidade, segundo o autor Kenji Tokitsu em seu livro Miyamoto Musashi: His Life and Writings ("Miyamoto Musashi: Sua Vida e Escritos", numa tradução livre), de 2004.
Miyamoto Musashi, ilustração de Inoue Takehiko do mangá Vagabond |
Kabuki e prostituição masculina
Prostitutos masculinos (kagema), que muitas vezes passavam como aprendizes de atores kabuki e serviam a uma clientela mista de homens e mulheres, faziam um comércio próspero em meados do século 19, apesar das crescentes restrições. Muitos desses prostitutos, assim como muitos jovens atores kabuki, eram serviçais contratados vendidos quando crianças a bordeis ou teatros, geralmente com um contrato de dez anos. As relações sexuais entre comerciantes e garotos contratados como empregados de loja ou empregados domésticos eram bastante comuns, pelo menos no imaginário popular, para serem objeto de histórias eróticas e piadas populares. Jovens atores kabuki muitas vezes trabalhavam como prostitutos fora do palco e eram celebrados da mesma maneira que as celebridades modernas, sendo muito procurados por patronos ricos, que competiam entre si para comprar os favores dos atores kabuki. Os atores onnagata (papel feminino) e wakashū-gata (papel de garoto adolescente) em particular foram objeto de muita apreciação por patronos homens e mulheres, e figuravam em grande parte nas gravuras nanshoku shunga (gravuras eróticas) e outras obras celebrando o nanshoku, que ocasionalmente alcançou o status de best-sellers.
Kitagawa Utamaro, Cliente Lubrificando um Prostituto (final do século 18) |
Arte do amor masculino
Essas atividades foram objeto de inúmeras obras literárias, muitas das quais ainda não traduzidas para línguas ocidentais. No entanto, traduções em inglês estão disponíveis para obras de Ihara Saikaku, que criou um personagem protagonista bissexual em A Vida de um Homem Amoroso (Kōshoku Ichidai Otoko, 1682), Jippensha Ikku, que criou uma relação homem-homem inicial na pós-publicação "Prefácio" de Caminhando ao longo do Tōkaidō (Tōkaidōchū Hizakurige, 1802 em diante), e Ueda Akinari que teve um monge budista homossexual em Contos de Luar e Chuva (Ugetsu Monogatari, 1776). Da mesma forma, muitos dos maiores artistas do período, como Hokusai e Hiroshige, orgulhavam-se de documentar tais amores em suas gravuras, conhecidas como ukiyo-e ("imagens do mundo flutuante"), e as que tinham um tom erótico, shunga ("imagens da primavera").
Miyagawa Chōshun, Três Samurais, O Manto Florido (séc. 18) |
Homossexualidade exclusiva e identidade sexual pessoal
O Grande Espelho do Amor Masculino (Nanshoku Okagami, 男色大鏡) de Ihara Saikaku foi o trabalho definitivo sobre o tema do amor masculino no Japão da era Tokugawa. Em sua introdução a O Grande Espelho do Amor Masculino, Paul Gordon Schalow escreve: "No capítulo de abertura de Nanshoku Okagami, Saikaku empregou o título em seu sentido literal quando afirmou: 'Tentei refletir neste grande espelho todas as variadas manifestações do amor masculino."' A intenção era ser uma reflexão social de todas as diferentes maneiras pelas quais os homens na sociedade Tokugawa amavam outros homens.
The Great Mirror of Male Love (edição em inglês de 1991) |
Em Cores Masculinas (Male Colors) de Gary Leupp (1997), ele escreve "Neste ambiente brilhante, refinado e tolerante, temos, não surpreendentemente, evidências de uma subcultura autoconsciente. Embora o Grande Espelho ocasionalmente retrate o comportamento bissexual, é digno de nota que Saikaku mais frequentemente retrata os devotos do amor masculino como uma classe que se considera exclusiva em suas preferências, enfatizam essa exclusividade chamando a si mesmos de "odiadores de mulheres" (onna-girai) e formando uma comunidade única — uma "seita do amor masculino". Nenhuma outra sociedade pré-moderna mostra esse fenômeno tão claramente quanto o Japão do século 17."
Paul Gordon Schalow faz referência a esses conceitos em sua introdução à tradução completa em inglês de O Grande Espelho do Amor Masculino, escrevendo: "Curiosamente, Saikaku estruturou Nanshoku Okagami não em torno do ethos bissexual do shojin-zuki ("conhecedor de garotos"), mas em torno do ethos exclusivamente homossexual do onna-girai ("odiador de mulheres")."
O poema no início de A Espada que Sobreviveu às Chamas do Amor (terceiro conto da Seção Três de O Grande Espelho) faz referência a um heróico "odiador de mulheres":
Memórias de um descascador de arroz, um odiador de mulheres até a morte, salvando seu local de nascimento do desastre
Nesta mesma história, vemos um personagem se referir a si mesmo e a um amigo como "odiadores de mulheres" com bom humor. "Que odiadores de mulheres nós somos!" ele exclama, depois que ambos concordam que o amor de "belos rapazes" é "a única coisa que interessa neste mundo".
Havia wakashu que hoje seria considerado homossexual, wakashu que hoje seria considerado bissexual e wakashu que hoje seria considerado heterossexual, assim como muitos que não podiam ser facilmente classificados nessas categorias.
As referências ao wakashu exclusivamente interessado em homens eram relativamente comuns, como no exemplo do popular ator descrito na história Uma Enorme Taça de Vinho Transbordando de Amor (primeiro conto da Seção Seis de O Grande Espelho), que recebia muitas cartas de amor de mulheres, mas que "as ignorava completamente, não por frieza, mas porque ele era devotado ao caminho do amor masculino."
Nanshoku Ōkagami (edição japonesa de 2018) |
Há também muitas evidências de rapazes que se engajavam nesse comportamento por dever, e não por amor ou luxúria. Como em O Garoto que Sacrificou sua Vida nas Vestes de seu Amante (segundo conto da Seção Quatro de O Grande Espelho), onde Saikaku escreve: "Parece que Yata Nisaburo, de quem você falou comigo em particular, não acredita no amor de garotos. Ele não estava interessado na ideia de ter um amante masculino e assim, embora com apenas dezessete anos e na flor da juventude, tolamente cortou seu topete. Achei suas desculpas profusas um tanto absurdas, mas decidi deixar o assunto de lado. Ontem à noite todo mundo veio e passamos a noite inteira rindo disso..."
Outro autor da era Tokugawa, Eijima Kiseki, que faz referência à homossexualidade exclusiva, escreve sobre um personagem em seu Os Caráteres dos Rapazes Mundanos, de 1715, "que nunca se importou com mulheres: durante toda a sua vida ele permaneceu solteiro, nas garras de intensas paixões por um belo garoto atrás do outro."
Há um gênero de histórias dedicado a debater o valor das "cores masculinas", "cores femininas" ou "seguir os dois caminhos". "Cores" aqui indicam uma forma específica de desejo sexual, com o desejo vindo do participante masculino adulto para a mulher receptora ou o rapaz receptor. Dependendo do público para o qual a história foi escrita, a resposta para o modo de vida preferido pode ser que a melhor maneira seja ser exclusivo para mulheres, ou moderadamente investido tanto em mulheres como em garotos, ou exclusivo para garotos. Embora essas "maneiras de amar" não fossem consideradas incompatíveis entre si, havia pessoas e grupos que defendiam seguir exclusivamente um caminho, consideravam-nos espiritualmente em desacordo, ou simplesmente apenas experimentavam pessoalmente atrações de acordo com uma dessas "maneiras".
Interpretação social nos papéis de homem e garoto
As expressões tradicionais de atividade sexual e romântica entre homens eram entre um homem que tinha passado por sua cerimônia de maioridade e um jovem rapaz que ainda não tinha.
Em sua introdução a O Grande Espelho do Amor Masculino, Schallow escreve: "Uma leitura cuidadosa de Nanshoku Okagami deixa claro que a restrição que exige que as relações homossexuais masculinas sejam entre um homem adulto e um wakashu às vezes era observada apenas na forma de interpretação fictícia. Isso significava que as relações entre pares de amantes homem-garoto eram aceitas como legítimas, independentemente de um homem real e um garoto real estarem envolvidos ou não, desde que um parceiro assumisse o papel de 'homem' e o outro o papel de 'garoto'."
Em Duas Velhas Cerejeiras Ainda em Flor (quarto conto da Seção Quatro de O Grande Espelho), os protagonistas são dois homens que se apaixonam desde a juventude. O "homem" neste relacionamento tem sessenta e seis anos, e o "garoto" tem sessenta e três.
Ishikawa Toyonobu (c. 1740): dois atores retratando um wakashū (esq.) e um homem adulto (dir.). Observe a diferença no penteado. |
O protagonista de A Vida de um Homem Amoroso, também de Saikaku, contrata os serviços de um "garoto" que acaba sendo dez anos mais velho do que ele e fica desapontado.
Em Contos de Luar e Chuva, escrito por Ueda Akinari, acredita-se comumente que a história Kikka no Chigiri (A Promessa do Crisântemo), seja sobre um relacionamento romântico entre dois homens adultos, onde nenhum obviamente detém o papel sociossexual de wakashu, embora o estruturem com sua diferença de idade em mente, usando a terminologia do "amor masculino", "irmão mais velho" versus "irmão mais novo". Na história de Haemon e Takashima, dois homens adultos, eles também usam essa terminologia, e Takashima também se apresenta como um wakashu.
Menções de homens que gostam abertamente de ser tanto o parceiro penetrante como o penetrado não são encontradas nesses trabalhos, mas são encontradas em diários pessoais do início da era Heian (séculos 9 a 12), como no diário de Fujiwara no Yorinaga, que escreve sobre o desejo de desempenhar tanto o papel sexual penetrativo quanto o receptivo. Isso também é referenciado em um poema da era Muromachi pelo sacerdote shingon Socho (1448-1532). Isso pode indicar que os costumes em torno da conduta apropriada para sexo entre homens mudaram rapidamente no decorrer de um a dois séculos.
Japão Meiji
À medida que o Japão avançava para a era Meiji (1868 a 1912), as práticas sexuais entre homens continuaram, assumindo novas formas. No entanto, havia uma crescente animosidade em relação a essas práticas. Apesar da animosidade, o nanshoku continuou, especificamente a versão samurai do nanshoku, e se tornou a expressão dominante da sexualidade homem-homem durante o período Meiji.
O filme Gohatto (1999), também conhecido como Taboo, retrata o amor masculino durante o fim da era samurai em meados do século 19. |
Rejeição da homossexualidade
Eventualmente, o Japão começou a se afastar de sua tolerância à homossexualidade, movendo-se para uma postura mais hostil em relação ao nanshoku e às práticas do mesmo sexo em geral. Por exemplo, o Ministério da Justiça aprovou uma lei de sodomia em 1873 criminalizando práticas homossexuais, denominada código keikan (鶏姦). Esse código teve o efeito de criticar um ato de homossexualidade sem criticar a própria cultura nanshoku, que na época estava associada ao código samurai e à masculinidade (keikan, "estupro de galinha", era uma forma alternativa de se referir a sexo entre homens sem usar a palavra nanshoku). O código keikan tornou-se mais aparente com o surgimento de grupos de estudantes delinquentes que se envolviam nas chamadas batalhas de chigo. Esses grupos atacavam outros alunos e os incorporavam ao seu grupo, muitas vezes praticando atividades homossexuais. Os jornais se tornaram altamente críticos dessas gangues caça-bishōnen ("belos garotos"), resultando em uma campanha anti-sodomia em todo o país.
Imperador Meiji aos 15 anos (1867), quando inicia o seu reinado, em traje ocidental. |
A única vez que a "sodomia homossexual" (penetração anal entre homens) foi proibida no Japão foi por pouco tempo durante 8 anos em 1872–1880 devido à influência ocidental.
A China da dinastia Ming (séculos 14 a 17) baniu a "sodomia homossexual" no Código Ming desde o reinado do Imperador Jiajing e continuou na dinastia Qing até 1907, quando a influência ocidental levou à revogação da lei. Os chineses zombavam e insultavam Puyi, o último imperador da China, e os japoneses como homossexuais e apresentavam isso como prova de perversão e incivilização deles.
Homossexualidade no Japão moderno
Apesar das tendências recentes que sugerem um novo nível de tolerância, bem como cenas abertas em cidades mais cosmopolitas (como Tóquio e Osaka), homens andrófilos e mulheres ginéfilas japoneses muitas vezes escondem sua sexualidade, com muitos até se casando com pessoas do sexo oposto.
Não sei se o mangá Ichigeki tem nanshoku, mas tem uns ótimos manservices! |
Será que o milenar estilo de vida nanshoku realmente permanecerá enterrado no passado? Ou ainda veremos o seu renascimento na cultura japonesa em algum momento do futuro (se possível não tão distante)?
Só rezando aos kamis para saber.
Fonte: Homosexuality in Japan
Nenhum comentário:
Postar um comentário