Do danshoku histórico ao boys' love de hoje, a especialista em cultura comparativa Saeki Junko examina aspectos da cultura homomasculina no Japão ao longo dos anos.
Obs.: A autora deste artigo, Saeki Junko, em muitos aspectos tem uma visão bastante negativa do amor masculino no Japão pré-moderno. Então muitos pontos aqui apresentados não são compartilhados por mim, dono deste blog, mas mesmo assim o artigo vale muito a pena ler.
Mais sofisticado
O Japão é comumente considerado atrás de outros países na aceitação social das pessoas que amam o mesmo sexo (AMS), mas no que diz respeito a algumas formas de homomasculinidade (homossexualidade masculina), pelo menos historicamente, tem mostrado uma tolerância considerável.
O amor homomasculino, incluindo o sexo, era conhecido como danshoku (ou nanshoku) antes do período Edo (1603-1868) e era visto como parte das práticas amorosas da época. Em grupos independentes exclusivamente masculinos, descritos como homossociais na sociologia — como os templos budistas nas montanhas onde as mulheres eram proibidas, a sociedade samurai centrada no homem e as trupes kabuki com apenas atores masculinos — a ausência de mulheres levou ao amor homomasculino e à gratificação de desejo sexual, com amizade e afeto entre homens evoluindo para relações sexuais. Naquela época, no Japão, não havia discriminação ou esforços para evitar tais relacionamentos pois não eram considerados desvios sexuais.
Reunião de Ano Novo em um Bordel por Masanobu Okumura (1739): um homem relaxa em um bordel com um rapaz (compondo um poema) e uma prostituta |
Havia também a frase shikidō futatsu, ou “as duas formas de amor”, referindo-se aos pares joshoku (homem-mulher) e danshoku (homem-homem). Esperava-se que um Don Juan japonês do período Edo fosse bem versado em ambos. Saikaku escreveu extensivamente sobre ambas as variedades, incluindo Nanshoku Ōkagami (1687) ("O Grande Espelho do Amor Masculino"), que se concentra em danshoku (às vezes também chamado de nanshoku, como no título desta obra).
Os debates sobre a superioridade do danshoku ou joshoku eram um tema literário, com escritores aplicando sua inteligência para expressar suas opiniões da mesma forma que competiam pelos respectivos méritos de udon e soba (pratos japoneses à base de macarrão) ou gatos e cães.
Nessas discussões, pode-se perceber a afirmação de que o danshoku vale mais, é mais sofisticado e artístico. Em vez de ser considerada perversa ou anormal, a apreciação estética do amor homomasculino continuou no período Edo, no Japão.
Descartado após o uso
É importante notar, no entanto, uma diferença fundamental entre o danshoku e a homossexualidade masculina moderna, que é que, em vez de ser entre dois homens adultos, o danshoku era tipicamente amor entre um adulto e um adolescente.
Os rapazes vistos como parceiros ideais para assuntos de danshoku ainda não haviam passado pela cerimônia de maioridade do genpuku (cerimônia no Japão antigo em que meninos passavam para a vida adulta, e as idades variavam entre os 10 e os 20 anos) e eram considerados tão lindos quanto garotas; esperava-se que os relacionamentos durassem apenas alguns anos, enquanto eles estavam no meio da adolescência. Como membros vulneráveis de uma sociedade de homens egocêntricos, os rapazes seriam muitas vezes descartados e, em casos extremos, poderiam ser mortos após o seu genpuku.
Quando o homem mais novo alcançava a maioridade, geralmente o relacionamento amoroso terminava. Eu disse geralmente. |
Marginalizado como anormalidade
Embora os aspectos negativos não devam ser esquecidos, no sentido de que as relações homomasculinas não eram consideradas anormais, pervertidas ou uma espécie de doença, o danshoku era socialmente aceito até o período Edo. No entanto, a partir da era Meiji (1868-1912), no processo de modernização, a influência dos valores relacionados com a ciência ocidental e a culpa pela homossexualidade — dado que os homens eram efectivamente punidos nos termos da lei por tais relações — levaram à marginalização da homossexualidade masculina como perversão ou anormalidade.
Yukio Mishima na neve no Dia da Fundação Nacional do Japão (fevereiro de 1944) |
No entanto, a cultura danshoku continuou desde a era Meiji em internatos para rapazes e pode ser vista em obras como Uita Sekusuarisu ("Vita Sexualis" ["Vida Sexual"]) de Mori Ōgai (1909) e Kusa no Hana ("Flores de Grama") de Fukunaga Takehiko (1954).
Intolerância social
O amor entre homens em sociedades dominadas por homens ou exclusivamente masculinas, como os internatos para rapazes, não se limita ao Japão. É bem sabido que os casos entre homens ou entre homens e rapazes eram um costume na sociedade grega antiga, embora haja exemplos na literatura e no cinema ocidentais modernos, como Maurice (1971), de E. M. Forster, que se passa em uma escola para rapazes, e o filme francês de 1964, Les Amitiés Particulières ("As Amizades Particulares"), passado em um internato católico, centrado no amor entre um garoto e outro estudante mais velho. As relações que essas obras retratam são semelhantes às do Japão pré-moderno.
A ideia vista no danshoku de que o amor homomasculino tem um valor artístico e estético mais elevado do que o amor heterossexual também é um tema do filme Total Eclipse ("Eclipse de uma Paixão") de 1995, retratando o caso amoroso entre os grandes poetas franceses Arthur Rimbaud e Paul Verlaine.
Paul Verlaine (David Thewlis) e Arthur Rimbaud (Leonardo DiCaprio) em Total Eclipse ("Eclipse de uma Paixão") |
Nas sociedades ocidentais, como na Grã-Bretanha até meados do século XX, as relações sexuais entre homens eram tratadas com severidade pela sociedade e sujeitas a punições legais. Os esforços daqueles que foram visados para se manifestarem contra a intolerância social levaram à erradicação ou à diminuição da opressão, como a criminalização da homossexualidade masculina e o julgamento de que esta era anormal.
No Japão, no entanto, talvez a prática desinibida do danshoku durante o período Edo tenha levado a uma repressão e preconceito mais fortes a partir da era Meiji, de modo que a aceitação social dos homens que amam homens está agora comparativamente atrás do Ocidente.
Boys' Love, um sucesso global
Recentemente, tem havido muita discussão no Japão sobre Johnny Kitagawa, o falecido chefe da agência de talentos Johnny and Associates, e seu abuso sexual de jovens astros. Este tipo de situação em que um empregador maduro ignorava a autonomia de menores, desejando uma relação sexual desigual, é muito semelhante ao danshoku do período Edo.
Os aspectos negativos do danshoku de relações unilaterais forçadas baseadas numa incompatibilidade de poder, recursos financeiros e posição social são incompatíveis com os conceitos modernos de direitos humanos. Assim, não se deve ignorar o abuso de menores por parte de Kitagawa com base em desculpas de que se trata de “cultura tradicional” ou de “ele contribuiu muito para o mundo do entretenimento”.
Ao mesmo tempo, no sentido de que o amor masculino não era visto como desviante, existe hoje algum cruzamento entre o danshoku e a defesa "LGBTQ". Ao reconhecer a diversidade do desejo sexual, parece possível ter uma visão positiva da história do danshoku.
Os mangás shōnen ai ("amor entre garotos", focado no romance entre rapazes) da década de 1970 e, posteriormente, os quadrinhos boys' love ("amor de garotos", abreviado como "BL"), bem como os dramas de televisão centrados em casais masculinos, continuam a ser populares entre as mulheres japonesas (mas não só, claro). Pode-se dizer que são uma continuação da cultura danshoku ou são algo totalmente diferente?
Kaze to Ki no Uta ("A Canção do Vento e das Árvores") de Takemiya Keiko |
No entanto, quando questionadas, ambas as autoras disseram que, em vez da literatura danshoku do Japão, foram influenciadas por livros e filmes ocidentais. Estas obras de mangá shōjo (destinadas ao público jovem do sexo feminino) são ambientadas em internatos masculinos na Alemanha e na França, que, como locais atraentes para suas leitoras, ajudam a transmitir de forma mais eficaz a pureza do boys' love. Para os leitores estrangeiros para quem os internatos masculinos são uma presença mais familiar, pode ter sido difícil romantizar estes mangás.
O mangá BL Given é um dos maiores sucessos do gênero atualmente |
Embora os mangás BL representem uma herança positiva da atitude tolerante da cultura danshoku em relação à homomasculinidade, o seu alinhamento com os valores contemporâneos permite-lhes alcançar uma popularidade global através da sua aceitação nas sociedades ocidentais, onde os movimentos pelos direitos homoafetivos têm feito mais progressos.
Desvendar a história da cultura danshoku não deveria ser simplesmente uma questão de relembrar os “bons velhos tempos”. Considerar seus pontos positivos e negativos oferece dicas para encontrar maneiras de aceitar diversas formas de sexualidade.
(Publicado originalmente em japonês em 5 de setembro de 2023. Imagem no topo: ilustração do Nanshoku Ōkagami [O Grande Espelho do Amor Masculino] de 1687. O homem no canto superior esquerdo dá uma palestra a belos rapazes sobre a excelência do danshoku; os rapazes são acompanhados pelos seus amantes samurais no canto inferior direito, caracterizados pela cabeça raspada no alto. Cortesia da Biblioteca Nacional da Dieta.)
Fonte: nippon.com
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