Conheça Tu'er Shen, o deus "coelho" da China e Taiwan protetor do amor masculino e que abençoa o casamento entre homens há 400 anos.
Tu'er Shen (chinês tradicional: 兔兒神; chinês simplificado: 兔儿神; pinyin: Tùrshén, O Espírito Láparo), Hu Tianbao ou Tu Shen (chinês: 兔神; pinyin: Tùshén, O Deus Coelho), é uma divindade chinesa que rege o amor e o sexo entre homens. Seu nome significa literalmente "divindade coelho". Seus adeptos se referem a ele como Ta Yeh (chinês tradicional: 大爺; chinês simplificado: 大爷; pinyin: Dàyé, O Mestre).
Em um conto popular da província de Fujian do século XVII, um soldado está apaixonado por um oficial provincial e o espiona para vê-lo nu. O oficial manda torturar e matar o soldado, mas ele retorna dos mortos na forma de um láparo (filhote de lebre ou de coelho) no sonho de um ancião da aldeia. O láparo exige que os homens locais construam um templo em sua homenagem, onde possam queimar incenso em nome dos "assuntos dos homens que desejam outros homens". A história termina assim:
De acordo com os costumes da província de Fujian, é aceitável que um homem e um rapaz formem um vínculo [qi] e falem entre si como se fossem irmãos. Ao ouvirem o aldeão relatar o sonho, os outros aldeões se esforçaram para contribuir com dinheiro para a construção do templo. Eles mantiveram silêncio sobre esse voto secreto, que cumpriram rápida e avidamente. Outros imploraram para saber o motivo da construção do templo, mas não descobriram. Todos foram até lá para rezar.
LendasTu'er Shen (de cabelo rosa) em Kiss of the Rabbit God, de Andrew Thomas Huang
De acordo com "O Que o Mestre Não Discutiria" ("Zibuyu"), escrito por Yuan Mei no século XVIII durante a dinastia Qing (1636–1912) e desenvolvendo mais o conto apresentado acima, Tu'er Shen era um homem chamado Hu Tianbao (胡天保) que se apaixonou por um jovem inspetor imperial muito bonito da província de Fujian. Um dia, ele foi flagrado espiando o inspetor nu através da parede de um banheiro, momento em que confessou sua relutante afeição pelo outro homem. O inspetor imperial condenou Hu Tianbao à morte por espancamento. Um mês após a morte de Hu Tianbao, ele apareceu a um homem de sua cidade natal em um sonho, alegando que, como seu crime foi de amor, os oficiais do submundo decidiram corrigir a injustiça nomeando-o deus e guardião das afeições homomasculinas.
Após o sonho, o homem ergueu um santuário para Hu Tianbao, que se tornou muito popular em Fujian, tanto que, no final da era Qing, o culto a Hu Tianbao foi alvo de extermínio pelo governo Qing.
A divindade pode ser vista como uma alternativa a Yue Lao, o Velho Sob a Lua, o deus casamenteiro das relações heterossexuais.
Cultos
Uma gíria para homens homoafetivos no final da China imperial era "coelhos", e é por isso que Hu Tianbao é chamado de divindade coelho, embora, na verdade, ele não tenha nada a ver com coelhos e não deva ser confundido com Tu'er Ye, o Coelho na Lua.
Repressão governamental
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Estatueta de Tu'er Shen |
A imagem é de dois homens se abraçando; o rosto de um está um tanto grisalho pela idade, o do outro, delicado e pálido. [Seu templo] é comumente chamado de pequeno templo oficial. Todos aqueles libertinos e desavergonhados que, ao verem homens jovens ou rapazes, desejam ter relações sexuais ilícitas com eles, rezam por ajuda ao ídolo de gesso. Então, fazem planos para seduzir e obter os objetos de seu desejo. Isso é conhecido como a ajuda secreta de Hu Tianbao. Em seguida, untam a boca do ídolo com tripa de porco e açúcar em agradecimento.
Interpretações modernas
Embora Tu'er Shen seja popularmente reverenciado por alguns templos, algumas escolas taoístas podem ter considerado a homossexualidade como má conduta sexual ao longo da história, provavelmente por considerá-la como algo fora do casamento. No entanto, muitas escrituras taoístas não mencionam nada contra relações entre pessoas do mesmo sexo, mantendo principalmente a neutralidade.
A história pode ser uma tentativa de mitificar um sistema de casamentos masculinos em Fujian, atestado pelo estudioso-burocrata Shen Defu e pelo escritor do século XVII Li Yu. O homem mais velho na união desempenhava o papel masculino de qixiong (pronúncia aproximada: tchi-shion), ou "irmão adotivo mais velho", pagando um "dote de noiva" à família do homem mais jovem — dizia-se que os virgens alcançavam preços mais altos — que se tornava o qidi (pronúncia aproximada: tchi-dí), ou "irmão adotivo mais novo". Li Yu descreveu a cerimônia: "Eles não pulam as três xícaras de chá nem os seis rituais de casamento — é como um casamento formal com um matrimônio formal." O qidi então se mudava para a casa do qixiong, onde ficava completamente dependente dele, era tratado como genro pelos pais do qixiong e possivelmente até ajudava a criar os filhos adotados pelo qixiong. Esses casamentos podiam durar até 20 anos, antes que ambos os homens precisassem se casar com mulheres para procriar.
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Daniel Jun como Tu'er Shen em Deuses Americanos |
A história de Hu Tianbao foi amplamente esquecida até mesmo pelos mantenedores do templo. No entanto, há um templo no distrito de Yonghe, em Taiwan, que venera Hu Tianbao em sua forma tradicional. O templo é conhecido como Wēi-míngtáng (威明堂. "Salão do Brilho Marcial" ao pé da letra), como você verá a seguir.
Renovação
Em 2006, um sacerdote taoísta chamado Lu Wei-ming fundou um templo para Tu'er Shen no distrito de Yonghe, na cidade de Nova Taipé, Taiwan. Cerca de 9.000 peregrinos homomasculinos visitam o templo todos os anos em oração para encontrar um parceiro ideal. O templo também realiza uma cerimônia de amor para casais masculinos no único santuário religioso do mundo para homens que amam homens. Pelo menos até 2023, o templo continuava sendo o único santuário existente dedicado à divindade, visto que o templo original em Fujian, na China, ainda não foi reconstruído. Alguns seguidores da divindade construíram altares dedicados ao deus em suas casas. O número de visitantes ao templo de Tu'er Shen em Taiwan aumentou exponencialmente na última década, especialmente após a legalização do casamento do mesmo sexo em Taiwan em 2019, o primeiro país da Ásia a fazê-lo.
Representação em obras de mídiaLu Wei-ming (esquerda), sacerdote do templo Wei-ming, e um fiel queimam um amuleto de papel taoísta durante um ritual de oração no templo na cidade de Nova Taipé
- Tu'er Shen é o personagem principal do drama taiwanês de 2010, The Rabbit God's Matchmaking (O Casamento do Deus Coelho), interpretado por Chen Weihan.
- No curta-metragem Kiss of the Rabbit God (Beijo do Deus Coelho, vídeo abaixo), de Andrew Thomas Huang, Tu'er Shen seduz um funcionário de restaurante.
- Tu'er Shen, também chamado de Tianbo, aparece no episódio "The Rapture of Burning" da série de TV estadunidense American Gods (Deuses Americanos). Ele é interpretado por Daniel Jun.
- Embora Tu'er Shen não seja mencionado nominalmente na série danmei (boys' love/men's love chinês) Grandmaster of Demonic Cultivation (O Fundador da Cultivação Demoníaca no Brasil), de Mo Xiang Tong Xiu (MXTX), e suas adaptações subsequentes, coelhos são um tema recorrente interpretado como um símbolo do desenvolvimento do relacionamento homomasculino dos personagens principais.
- Tu'er Shen foi adicionado no videogame Tokyo Afterschool Summoners como um personagem jogável. A história de origem deste personagem segue de perto a origem de sua inspiração (tem problemas com oficiais do governo, embora eles lhe façam lembrar de um que ele amava, e ajuda jovens tímidos nas questões do amor), só que agora ele tem a capacidade de ver o futuro próximo e exibe suas habilidades no parkour nas redes sociais.
A seguir você lerá a tradução feita por mim (com correções nas notas finais) de um texto traduzido do inglês por Nathaniel Hu de um original em chinês em 2004.¹
Hu Tianbao se apaixonou por um jovem censor e o seguiu secretamente, espiando suas nádegas. Ao ser pego, Hu confessou seus sentimentos, mas foi morto pelos subordinados do censor. Mais tarde, o espírito de Hu apareceu em um sonho, dizendo que ele havia sido nomeado pelo submundo como o Deus Coelho para supervisionar questões de homossexualidade masculina. Um templo foi então construído em sua homenagem, que se tornou popular entre homens que buscavam relacionamentos do mesmo sexo. A história sugere que o censor poderia ter aprendido a tolerância com o exemplo do Duque Jing de Qi, que poupou a vida de um homem que o olhava com desejo.
TU'ER SHEN(O DEUS COELHO)--Uma Divindade Padroeira do Sexo Homo na China--Nos primeiros anos da dinastia Qing, havia um certo yushi (censor) que havia concluído o exame civil ainda jovem. Quando ele fez uma viagem de inspeção a Fujian, encontrou um homem chamado Hu Tianbao, que ficou encantado com sua beleza excepcional (o jovem censor era um rapaz bonito). Onde quer que ele saísse em sua liteira ou na corte, Hu o olhava de soslaio. O censor sentiu-se incomodado, intrigado com o comportamento de Hu, e seus subordinados não ousaram se manifestar.
Não muito tempo depois, o censor foi inspecionar outro condado, e Hu o seguiu. No caminho, escondeu-se secretamente no banheiro para espiar suas nádegas. O censor, mais desconfiado do que nunca, o convocou para interrogatório. A princípio, Hu permaneceu em silêncio, mas depois de três chibatadas, confessou: "A verdade é que fiquei encantado com a beleza de Sua Excelência e não consegui tirá-lo da cabeça. Sei que você é uma cássia [N/T: árvore aromática da Ásia] celestial, livre de laços de pássaros comuns. Mas meu coração já está em delírio, então, sem querer, me comportei de forma tão imprópria." Ao ouvir isso, o censor ficou furioso. Imediatamente ordenou que seus subordinados o matassem sob uma árvore morta.
Um mês depois, a alma de Hu Tianbao apareceu no sonho de um homem do mesmo distrito, para transmitir sua mensagem: "Como minha mente se deixou levar por pensamentos impróprios, ofendi um guiren (uma pessoa de alta posição), então era apropriado que eu morresse dessa forma. Mas, na verdade, foi puro ato de amor, um momento de paixão e nada parecido com malícia. O oficial do submundo zombou de mim, mas ninguém me culpou. Agora, o oficial do submundo me nomeou Deus Coelho (Tu'er Shen), concedendo-me o dever de supervisionar os assuntos relacionados a homens que desejam outros homens (sexo homo). Por favor, construam um templo para mim e convidem o público a oferecer incenso e velas."
Há muito tempo se falava de um costume existente em Fujian, em que homens procuravam outros homens para serem seus qidi (irmãos mais novos).² À medida que as notícias do sonho do homem se espalhavam, todos correram para coletar doações e erguer um templo. O resultado foi positivo e imediato. Todos os que desejavam um encontro secreto ou que tinham sido frustrados na busca por outro homem, reuniam-se para oferecer orações.
Cheng Yumen (amigo do autor) disse: "Este belo censor não leu o capítulo do Yanzi Chunqiu ("Anais do Mestre Yan"), onde o Duque Jing de Qi foi aconselhado a não matar seu homem emplumado."³
O Sr. Di Weiren tinha uma história diferente. Dizem que Di era jovem e bonito quando era compilador na Academia Hanlin. Havia um jovem que se apresentou para ser seu motorista; ele trabalhava arduamente enquanto recusava pagamento. Di ficou muito satisfeito com ele. Em pouco tempo, o motorista adoeceu gravemente, não havia médico ou remédio que pudesse salvá-lo. Quando estava prestes a morrer, chamou seu mestre e disse-lhe: "Eu, seu servo, morrerei em breve e preciso lhe dizer algo. Estou morrendo porque estou encantado com sua beleza." O Sr. Di riu e tocou seu ombro. "Garoto bobo, se era assim que você se sentia, por que não contou antes?" Ele providenciou um funeral digno para ele.
Notas:
- Esta história foi traduzida do Zibuyu ("O Que o Mestre Não Discutiria" [o mestre seria Kong Fuzi {Confúcio}]), uma coletânea de histórias sobrenaturais de Yuan Mei, poeta homoafetivo chinês do século XVIII.
- Qidi (irmão adotivo mais novo) tem conotação para parceiro homoafetivo.
- Diz-se que o Duque Jing de Qi valorizava mais a pássaros que a seus guerreiros. Um de seus yuren ("homens emplumados", encarregados de cuidar dos pássaros do duque) certa vez perdeu um pássaro. Isso deixou o Duque muito irritado e quase o matou.
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