O historiador estadunidense John Boswell afirmava que a adelfopoiese, um rito cristão para unir dois homens como "irmãos espirituais", equivalia a uma saída aprovada para o amor romântico e até sexual entre casais masculinos.
Adelfopoiese (do grego ἀδελφοποίησις [adelphopoíisis], derivado de ἀδελφός, adelphós, lit. 'irmão', e ποιέω, poiéō, lit. 'eu faço', literalmente 'fazer-se irmãos') é uma cerimônia praticada historicamente na tradição cristã oriental para unir duas pessoas do mesmo sexo (normalmente homens) em um relacionamento reconhecido pela igreja análogo à fraternidade ("homens como irmãos").
Tais cerimônias podem ser encontradas na história da Igreja Católica até o século XIV e na Igreja Ortodoxa Oriental até o início do século XX. Documentadas em manuscritos bizantinos do século IX ao século XV, as orações estabeleciam os participantes como "irmãos espirituais" (pneumatikoi adelphoi) e continham referências a pares de santos, incluindo, principalmente, os Santos Sérgio e Baco, bem como os Santos Cosme e Damião, famosos por sua intensa amizade que alguns modernamente interpretam como homoafetiva. Na Inglaterra, alguns estudiosos acreditam que uma adelfopoiese também pode ter ocorrido entre os cavaleiros do século XIV que inspiraram a lenda de Robin Hood, William Neville e John Clanvowe (possivelmente amantes, de acordo com os historiadores John Bowers em Three Readings of The Knight's Tale: Sir John Clanvowe, Geoffrey Chaucer, and James I of Scotland [2004] e William Stacy Johnson em A Time to Embrace: Same-Sex Relationships in Religion, Law, and Politics [2012]), que serviam o Rei Ricardo II (ele mesmo considerado homossexual pelo seu principal cronista, Thomas Walsingham, e uma variação dela entre o Rei Eduardo II e seu amante Piers Gaveston, Conde da Cornualha, que se tornaram "irmãos de sangue" através de uma cerimônia.
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Eduardo II e seu favorito, Piers Gaveston, de Marcus Stone (1872) |
No final do século XX, a tradição cristã ganhou notoriedade como foco de controvérsia envolvendo defensores e opositores da legalização secular e religiosa de relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo.
Cristianismo e homossexualidade na Idade Média
Por volta do ano 400, no Império Romano cristianizado, o cristianismo começou a introduzir um novo código sexual focado nos conceitos religiosos de santidade e "pureza". A Igreja emergente, que ganhou influência social e política em meados do século III, tinha duas abordagens à sexualidade. Uma delas, como suas predecessoras greco-romanas, não via nem julgava a sexualidade em termos de atos heterossexuais ou homossexuais. Em vez disso, julgava apenas o ato em si e promovia uma vida sexual focada principalmente em relacionamentos platônicos. Por exemplo, a tradição romana de um homem formar uma união legal com outro homem declarando-se "irmão" persistiu durante os primeiros séculos medievais. Além disso, embora não houvesse casamento oficial dentro das comunidades religiosas, relacionamentos ou laços duradouros do mesmo sexo eram estabelecidos.
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Ilustração dois casais, um masculino e um feminino, se beijando (c.1220s), da Bíblia Moralizada de Viena |
O tom das denúncias frequentemente indica uma preocupação mais do que teórica. O Arcebispo Ralph de Tours instalou seu amante, John, como Bispo de Orléans com o consentimento do Rei da França e do Papa Urbano II, e as Doze Conclusões dos lolardos incluíam a denúncia do celibato sacerdotal como causa de sodomia.
O "fazer-se irmãos" como união do mesmo sexoA queima do cavaleiro Richard Puller von Hohenburg com seu servo Anton Mätzler diante dos muros de Zurique, Suíça, por sodomia, 1482
O ritual ganhou atenção popular no Ocidente depois que o historiador da Universidade de Yale, John Boswell, em seu livro Same-sex unions in pre-modern Europe ("Uniões do mesmo sexo na Europa pré-moderna") de 1994, também publicado como The marriage of likeness ("O casamento da semelhança"), argumentou que a prática visava unir duas pessoas em uma união semelhante ao casamento. Sua teoria foi contestada por outros especialistas acadêmicos no assunto, notadamente a historiadora Claudia Rapp em uma edição especial da revista acadêmica católica Traditio (vol. 52) em 1997, bem como pelo historiador litúrgico bizantino Stefano Parenti, que identificou as origens dos problemas na análise dos manuscritos de Boswell. O trabalho de Boswell também foi contestado pela comunidade religiosa atual, descendente mais direta daquela envolvida na prática original, a Igreja Ortodoxa Grega, que considerava seu trabalho uma apropriação cultural estadunidense moderna de sua tradição e traduz adelphopoiesis como "fraternização", envolvendo uma amizade casta. Uma tradução semelhante do termo é "fazer-se irmãos".
Embora muitos estudiosos tenham criticado as descobertas de Boswell, alguns concordaram com ele, incluindo os estudiosos episcopais liberais americanos Robin Scroggs e William L. Countryman. Boswell forneceu texto e tradução para diversas versões da cerimônia de "fraternização" em grego, além de traduções para diversas versões eslavas (bratotvorenie ou pobratimstvo), embora Rapp e outros contestassem a precisão de suas traduções. O próprio Boswell negou que adelphopoiesis devesse ser traduzido corretamente como "casamento homossexual", mas argumentou que "fazer-se irmãos" era uma tradução "anacronicamente literal" e propôs "união do mesmo sexo" como a tradução preferível. A preferência de Boswell era problemática para os canonistas ortodoxos orientais, bem como para estudiosos como Rapp, que argumentavam que ela envolvia uma epistemologia e antropologia seculares anacronicamente modernas, diferentes do cristianismo tradicional. Boswell sugeriu um possível paralelo às construções modernas de identidade sexual, embora os ritos para adelfopoiese destacassem explicitamente a natureza espiritual da união em termos cristãos pré-modernos.
No entanto, contradizendo explicitamente as interpretações que excluem o eros (amor sexual, apaixonado) do ritual está o próprio Livro de Direito Canônico da Igreja Ortodoxa Oriental, o Pedalion, que, conforme relatado pelo historiador Franco Mormando em The Preacher's Demons: Bernardino of Siena and the Social Underworld of Early Renaissance Italy ("Os Demônios do Pregador: Bernardino de Siena e o Submundo Social da Itália Renascentista"), "reconhece a natureza frequentemente erótica do relacionamento ritualizado na cerimônia de 'irmandade por adoção' ou 'irmandade matrimonial': ao proibir a cerimônia (em seu capítulo sobre casamento), o Pedalion afirma que a irmandade matrimonial 'apenas fornece matéria para algumas pessoas satisfazerem seus desejos carnais e desfrutarem de prazeres sensuais, como inúmeros exemplos de experiências reais demonstraram em vários momentos e em vários lugares...'"
Alguns estudos mais recentes investigaram a afirmação de John Boswell em linhas etnográficas. Nik Jovčić-Sas, em seu artigo "A Tradição da Homofobia: Respostas a Relacionamentos entre Pessoas do Mesmo Sexo na Ortodoxia Sérvia do século XIX aos dias atuais", destaca as qualidades distintamente sexuais e românticas do pobratimstvo registradas na Sérvia entre o século XIX e o início do século XX. Observando o trabalho de antropólogos e etnógrafos como Mary Edith Durham, Paul Näcke, Dinko Tomašić e Tih R. Gregorovitch, Jovčić-Sas argumenta que as uniões fraternais não eram simplesmente uniões platônicas ou políticas, como ensinado pela Igreja Ortodoxa Sérvia. Ele também chama a atenção para os efeitos da vergonha cultural da Europa Ocidental sobre a sociedade sérvia — uma vergonha que resulta em supressão e amnésia cultural em relação à práxis e à materialização do pobratimstvo em relacionamentos do mesmo sexo anteriores.
Descrição do ritualDois cupidos nus atiram flechas um no outro para se apaixonarem mutuamente em “Batalha Feliz”, ilustração original para "Carta 11: Amizade" em O Pilar e o Fundamento da Verdade de Pavel Florensky
A primeira notícia moderna que temos do rito de adelfopoiese é de 1914, quando o padre russo Pavel Florenski cita os principais elementos da liturgia do rito em seu livro The Pillar and the Ground of the Truth ("O Pilar e o Fundamento da Verdade"):
- Os que se adotam como irmãos ficam na igreja diante de um analogion, sobre o qual repousam a Cruz e o Evangelho. O mais velho dos futuros irmãos fica à direita, o mais novo, à esquerda.
- São recitadas ladainhas e orações, pedindo a união dos futuros irmãos em amor e relembrando exemplos de amizade da história da Igreja.
- Os futuros irmãos são unidos por um único cinto, suas mãos são colocadas sobre o Evangelho e cada um recebe uma vela acesa.
- Lições das Epístolas (1 Cor. 12:27-13:8) e do Evangelho (Jo. 17:18-26).
- São recitadas outras ladainhas e orações, semelhantes às do item (2) acima.
- É rezado o Pai-Nosso.
- Os irmãos por adoção recebem a comunhão dos Santos Dons pré-santificados, [compartilhando assim] um cálice comum.
- Eles caminham ao redor do analogion de mãos dadas, ao som do tropário: 'Ó Senhor, olha do céu e vê...'
- Eles trocam um beijo.
- Um verso (Sl 133:1) é cantado: 'Oh! Quão bom e quão suave é que os irmãos vivam em união'
Uma das orações, que são recitadas durante a cerimônia, é a seguinte:
Deus Todo Poderoso, que foi antes do tempo e será para sempre, que se inclinou para visitar os homens através do seio da Mãe de Deus e da Virgem Maria, envie seu anjo sagrado para estes seus servos [nome] e [nome], que se amam, assim como Teus santos apóstolos Pedro e Paulo se amavam, e André e Tiago, João e Tomé, Tiago, Filipe, Mateus, Simão, Tadeu, Matias e os santos martirizados Sérgio e Baco, assim como Cosme e Damião, não pelo amor carnal, mas pela fé e amor do Espírito Santo, que todos os dias de sua vida permaneçam em amor. Através de Jesus Cristo, nosso Senhor. Amém.
Às vezes, a troca de cruzes é adicionada a este rito. É possível que não tenha se tornado parte integrante do serviço simplesmente porque os irmãos adotivos já teriam trocado cruzes antes do serviço propriamente dito. Juntamente com a comunhão comum, essa troca de cruzes é um momento muito significativo do serviço; primeiro, como um sinal de carregamento mútuo da cruz pelos irmãos adotivos e, segundo, como um ritual que dá a cada um dos "assim chamados irmãos" uma lembrança de sua abnegação e fidelidade ao outro.
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A Alma de Jônatas foi unida à Alma de Davi, na "Bíblia das Crianças" organizada por Arthur Mee (1942) |
Florensky cita o relacionamento entre duas figuras heróicas do Reino de Israel, o príncipe Jônatas e o futuro rei Davi, então um pastor, como um exemplo da qualidade do relacionamento que ele expõe, citando 1 Samuel 18:1-4 e 20:4, 8, 17 e 41 como evidência.
Foi-se explicado em outro site que foi a partir da divulgação desse ritual apresentado a Boswell por um amigo seu que ele começou o projeto de pesquisa que culminou em seu livro Same-sex unions in pre-modern Europe.
Na Albânia, a existência do rito é de conhecimento geral, mas poucos conheciam detalhes sobre a prática atual, devido à proibição religiosa na Albânia entre 1967 e 1990. Em 1991, o rito foi realizado em Elbasan, na Albânia central, e foi considerado um "casamento 'gay'".
Quando morriam, os dois homens eram costumeiramente enterrados juntos, à maneira dos casais, masculinos ou heterossexuais, da antiguidade grega, seguindo o exemplo de Aquiles e Pátroclo.
Registro galego-português
Verifica-se a prática da adelfopoiese no Reino da Galiza, entidade geopolítica que então englobava o Condado Portucalense (que futuramente daria origem a Portugal), sendo o documento mais antigo que credencia este tipo de vínculo no espaço galego-português é datado de 1061. Neste documento, estipula-se o irmanamento de Pedro Dias e Munho Vandilaz, o que muitos consideram um vínculo matrimonial.
Pedro Dias e Munho Vandilaz eram dois homens da paróquia de Ordes, em Rairiz de Veiga, Galiza (Espanha, perto da fronteira com Portugal), que em 16 de abril de 1061 participaram do primeiro casamento homoafetivo da história da Galiza e um dos primeiros da Europa, no município de Rairiz de Veiga, na região de Límia.
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Santos Sérgio e Baco, século VII, Museu Nacional de Artes Khanenko em Kiev, Ucrânia |
Na Crónica Troiana, cuja versão galega é conservada em um manuscrito de 1373, obra de Fernán Martís., uma das obras mais importantes da literatura medieval galego-portuguesa, aparecem amizades muito intensas entre homens habituados a dormir juntos ou a beijar-se em público sem sofrerem ataques ou agressões contra suas demonstrações de afeto mútuo. Isso pode indicar uma aceitação relativa das expressões públicas do amor masculino dentro da etiqueta cavalheiresca da época, como registrado em várias partes da Europa medieval.
Fontes:
https://vieiros.com/nova/70724/mais-que-amigos
https://pontodepauta.com/2011/08/27/o-primeiro-matrimonio-homossexual-contemporaneo-foi-entre-duas-mulheres-galegas/
https://web.archive.org/web/20050213075208/http://www.gay.ru/english/life/religion/florensk.htm
https://web.archive.org/web/20050211032232/http://www.gay.ru/english/life/religion/adelpho.htm
https://web.archive.org/web/20050215134921/http://www.paratheke.net/stephanos/articles/adelphopoiesis.html
https://pt.wikipedia.org/wiki/Adelfopoiese
https://en.wikipedia.org/wiki/Adelphopoiesis
https://en.wikipedia.org/wiki/Homosexuality_in_medieval_Europe
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